Uma manhã de leituras cruzadas sobre a “emergência da sociedade europeia” (H. Kaelble, J.Diez Mderano, Klaus Eder, Colin Crouch…)
II. 1968: O “fracasso” das reformas das Ditaduras “tradicionais” e “modernas”
Há 40 anos,um dia depois do assassinato de MLKjr em Memphis, a ditadura militar brasileira (1964-1985) dava um golpe fatal na Frente Ampla (FA), um movimento da oposição organizado em 1966 a partir do exílio e que coaligou vários sectores da oposição “ilegal”, nomeadamente os grupos liderados por Carlos Lacerda, Juscelino Kuditschek e João Goulart, o presidente deposto (não incluindo o PCB). A FA iniciou a sua actividade política no Brasil no 2º semestre de 1967, mobilizando estudantes e trabalhadores. Depois de um comício com alguma expressão em Maringá (noroeste do Paraná) o Ministro da Justiça do Governo da Ditadura, por Portaria de 5 de Abril de 1968 proibiu todas as actividades da FA e ordenou a prisão dos activistas que violassem as restrições impostas à actividade política. Abriu-se assim o caminho que conduziria ao endurecimento do regime com o Acto Institucional Nº 5 (que encerrou indefinidamente o Congresso (Dez.1968), uma era de forte repressão , conhecida pelos “Anos de Chumbo”, que se prolongou até ao final do Governo de Emílio Médici (Março de 1974)
Na Europa Comunista, no mesmo dia de Abril , em Praga, capital da República Socialista da Checoslováquia, alguns intelectuais comunistas, sob a liderança do recém-líder do Partido Comunista local (Alexander Dubcek) e do chefe do governo (Ludvik Svoboda),tornaram públicas as suas propostas reformistas do regime “a partir de dentro”: um “socialismo com rosto humano” [ou seja o fim do Estalinismo, e não o “regresso” ao modelo “ocidental” ou “capitalista, como o pretenderam anteriores movimentos RDA, 1953; Hungria, 1956)]; a “nova Checoslováquia” incluia o socialismo com liberdade de imprensa, mudanças político-económicas, afirmação de soberania e autonomia face a URSS, e uma relação preferencial com os países socialistas com base nos princípios da igualdade dos direitos, vantagem mútua, solidariedade e não ingerência. Foram, para a RSC, meses de esperança que morreram com a entrada dos tanques do Pacto de Varsóvia a 20 de Agosto, pese embora a prolongada resistência popular da não cooperação com os ocupantes (a “Batalha de Praga” e a resistência do “não”, Agosto-Outubro 1968 ).
Uma obra de referência para compreender a experiência histórica destas “ditaduras populares” ou “ditaduras modernas” é a de Konrad H. JARAUSCH: Dictatorship as Experience: Towards a Socio-Cultural History of the GDR ( Berghahn Books, 1999 ). Mas Todavia a “Primavera de Praga” começara antes de Abril. Desde Janeiro de 1968 que era notório um clima crescente de abertura. Viviam então em Praga muitos exilados portugueses ligados ao PCP. Entre eles o casal de professores Fernanda Cardoso de Figueiredo e Flausino Torres (Historiador) . Instalaram-se por lá em Outubro de 1967 , vindos de Argel. Ambos deixaram registados testesmunhos coevos (FT) ou posteriores (FCF) deste “grande acontecimento”. Flausino era então professor na Universidade Karlova (a pedido de Álvaro Cunhal) e escreveu longamente sobre o assunto nas suas memórias. Retenho apenas esta notação extraordinária:
“ A alegria e as intenções do Povo ficaram bem manifestas a todo aquele que se não conservou em casa durante os primeiros oito meses do ano de 68. Então, a quem já vivia em Praga há meses ou anos, não podiam passar despercebidas as mudanças. os checos são serenos , calados ou falam baixo e sem gestos uns cons os outros. Os ocidentais, sobretudo os espanhois, portugueses, italianos do sul, fazem tanto barulho , riem-se tão espalhafatosamente que o contrário é muito estranho!”
“Pois durante alguns meses , os checos deram largas a uma alegria espalhafatosa e franca: interrogavam-se uns aos outros na rua, quase sem se conhecerem; respondiam às perguntas dos jornalistas e repórteres da Rádio e Televisão tão abertamente e com tanto à-vontade, por vezes, como se o seu temperamento fosse outro. Um queixava-se da pequenez da sua casita, em que três ou quatro pessoas dormiam no mesmo compartimento; uma velhota chorava abundantemente porque toda a família se encontrava como sardinha em canastra; uma outra lembrava o marido e um filho desaparecidos há anos, durante umas purgas. Mil e um casos; mil e uma pessoas se tornavam conhecidas.
E o interessante é que a conversa não era uma cadeia ordenada de perguntas e respostas, mas tudo entrelaçado como uma teia, em volta de um centro de interesse. E são dezenas de grupos que se vêem, somente na praça Venceslau e nas ruas que a cortam e naquela em que a Praça termina. Jamais alguém viu tal espetáculo democrático em Praga! Numa “democracia popular” era a primeira vez que tal se passava desde 1948. Discutem-se acaloradamente os acontecimentos; discutem-se entre checos e entre estrangeiros. Referem-se coisas; acusam-se criminosos e crimes; lamentam-se mortos e desaparecidos. A revolução e os seus heróis são postos a nu, com as suas manchas e com as suas faltas, sem o reclame que lhes tinha sido feito. Muito se torna claro, claro diamantino, por vezes!”
Tudo pareceu acabar em agosto. Como testemunhou anos depois Fernanda Cardoso de Figueiredo, “No dia da invasão [20 de Agosto], eu tive medo, mas o Flausino saíu para a rua e foi para o centro. Viu então os tanques soviéticos e a reacção dos jovens à volta dos russos a perguntar “onde está o inimigo?”. Nesse dia regressou a casa muito perturbado com tudo e juntámo-nos então com outros portugueses como a Mercedes Ferreira e o António Lopes, a Manuela Bacelar, toda a gente estava desesperada» [ Cf. Paulo Torres Bento, Flausino Torres [1906-1974], Documentos e Fragmentos Biográficos de um intelectual actifascista, Porto, Afrontamento, 2006, pp. 276-281, um livro essencial ]
HAF