No início do ano lectivo 1978-79, depois de uma dura oposição das Faculdades de Letras, entrou em vigor o DL 53/78 de 31 Maio (DR 124), assinado por Mário Sottomayor Cardia, Ministro da Educação e Cultura do II Governo Constitucional (liderado por Mário Soares) , reformando os cursos da Faculdade de Letras. Não me interessa agora apreciar a valia da dita reforma, que em muitos aspectos foi um notório retrogresso (que trinta anos depois a Bolonhização corrige). Mas interessa recordar os procedimentos adoptados.
No essencial a Reforma dos Cursos das Faculdades de Letras consistiu na substituição de um modelo de cinco anos - com dois ciclos, o primeiro de 3 anos , o curso geral conducente ao título de Bachaler, seguido de dois anos de curso especializado conducente ao título de Licenciatura -, por um ciclo único de 4 anos que tilulava licenciados. A reforma o MEC aplicou-se de imediato a todos os estudantes excepto aos que frequentavam o 4ºano (ou seja o 1º ano do curso de especialização). Estes alunos puderam optar entre a adaptação ao modelo de 4 anos ou prosseguir o modelo de 5 anos com o qual tinham iniciado a sua formação. A minha Faculdade (Letras da Universidade de Coimbra) respeitou de forma exemplar a escolha dos estudantes e assegurou, numa era em que o ensino superior era quase ainda gratuito (mesmo as despesas administrativas eram baixas) , que tanto os estudantes do velho como os do novo curriculum tivessem aulas regulares e com o nível a que estávamos habituados e exigíamos. Na altura decidi manter-me no plano antigo, e orgulho-me muito disso e dos benefícios que dessa escolha colhi. De um modo geral é essa a opinião que persiste entre os que nele prosseguiram. Curiosamente os colegas que optaram pelos 4 anos também não ficaram insatisfeitos. Isto é talvez o melhor sinal de que a transição se fez de forma sensata , justa e competente.
Ora aquela solução contrasta totalmente com a adoptada pela minha universidade na actual generalização da transição para Bolonha (2007-2008). Esta foi forçada para todos os alunos que em 2007-08 se matriculariam até ao 3º ano. Perfeitamente aceitável. Aos alunos que em 2007-08 deveriam frequentar o último ano da licenciatura (4º ano), ofereceram duas possibilidades: a conversão a Bolonha ou a concretização do antigo plano de licenciatura. O surpreendente, e completamente reprovável, é que os alunos que optaram pela segunda solução ficaram limitados à possibilidade de concluir a última dezena de disciplinas do curso de Licenciatura através do regime de exame final, isto é, sem um programa de trabalho que inclua aulas e formas de avaliação contínua. Pelo menos os alunos de alguns cursos, ponderando os seus justos interesses não hesitaram: entre poderem ser técnicos de qualquer coisa, preferiram prosseguir o plano antigo que permite a licenciatura e credenciação num plano notoriamente mais vantajoso. Iniciaram um curso de 4 anos, pagaram regularmente as propinas e em 2007-08 pagarão propinas como os outros. Mas não têm aulas regulares como deveriam ter ( e há quem diga que já não há almoços grátis). A compensão em tutoria individual a prestar pelos docentes (a trinta estudantes!!!!!) ou em assistência às aulas de disciplinas do 1º ciclo com conteúdos similares é, para ser muito generoso, absurda. A única “virtude” que reconheço a esta solução é a de impedir que a Bolonhização se faça com a inerente e indispensável mudança no métodos de ensino, aquilo que deveria ser a verdadeira “carne” da reforma. Deste modo repõe-se alguma justiça: correrá mal para todos. O facto é que as reformas só são boas quando além de bem pensadas são bem aplicadas (uma sentença que até o quinhentista Jacques de La Palisse subscreveria).
Entre os factores que diferenciam as duas transições acima referidas poderão estar, por um lado, a actual ausência de um movimento estudantil plural e activo nas questões directamente relacionadas com o ensino. Onde ele ainda hoje existe com estas características, e não quase reduzido aos episódios praxistas, as coisas parece estarem a correr de outra forma, com os estudantes constantemente auto-informados e participativos no desenho das soluções concretas para a Bolonhização. Por outro lado, é necessário reconhecer a existência, nas instituições do Ensino Superior e em particular nas Universitárias, de um diferente grau do que pode designar-se como o “espírito académico” ou, termo que eu prefiro, de uma “cultura de academia”. Estou seguro de que na FLUC em 1978-79 apesar dos problemas de maior e menor dimensão, a boa transição na reforma dos cursos ficou a dever-se à presença daqueles dois elementos e se eles não foram decisivos ajudaram muito.
A propósito da qualidade das coisas (e das instituições) a semana que agora começa é de grande relevância para a Universidade de Évora. Nela decorrerá a última visita do grupo de peritos da European University Association que procede à avaliação institucional e cujo relatório e conclusões finais serão tornadas públicas na próxma 6ª feira. Tenho a certeza de que os novos tempos se tornarão interessantes nesta Universidade.
II
Tal como anunciei no Diário do passado dia 21, começo hoje a divulgação sistemática de algumas das mais importantes conclusões dos últimos relatórios Eurydices sobre a dimensão social do ensino superior nas sociedades europeias. Sobre as fontes e procedimentos que vou adoptar e a agenda que vou seguir, tudo deixei suficientemente explicado em registo do 9822º dia. O primeiro feixe de questões é a seguinte: Quem paga os custos do Ensino Superior? Qual é o nível de intervenção do financiamento público (FP)? E este FP cobre que tipo de despesas? Qual é que isto tudo ocorre em Portugal, tanto quanto os dados permitem conhecer? Cruzando a recente informação sintética da Comissão Europeia, nomeadamente a MEMO/07/183 de 10 de Maio de 2007 (documento que aqui seguimos de perto por vezes em tradução literal) com os Key Data on Higher Education in Europe / Chiffres Clés de Enseignement Supérieur en Europe (edição de setembro de 2007) fica uma resposta.
O ensino superior na Europa é principalmente organizado e financiado pelo sector público. Ele acolhe mais de 70% dos estudantes da EU-27 (União Europeia a 27 países) e emprega a maior parte dos docentes. O sector privado independente (isto é , não subvencionado pelo Estado) é virtualmente inexistente excepto em Chipre, Polónia, Portugal e Roménia.
No caso português, seguindo os dados de 2003-04, as principais diferenças em relação ào conjunto da EU-27 são: a ausência de um sector privado subvencionado, que na Europa compreende cerca de ¼ dos estudantes do Ensino Terciário; o sector privado independente tem um peso relevante (c. 50% dos estudantes) nos cursos profissionais (práticos e técnicos) do 1º Ciclo (ISCED 5B), mais modesto nos cursos mais teóricos e de elevada especialização técnica ainda do 1º Ciclo (27,4, ISCED 5A) e bastante menos expressivo nos cursos de prós-graduação ou de 2º e 3º Ciclos (11,3%, ISCED 6), quando o “peso” médio do sector privado independente na Europa em cada um dos níveis indicados é respectivamente 7,1%, 9,1% e 1,8% (cf. Kei Data, Fig.A3)
Na EU-27, em 2003, a despesa pública total de Educação no Ensino Superior (DPTEES) era constituida por alocações directas às instituições de ES (83,7%), ajuda financeira aos estudantes (16,1%) e transferências públicas para as organizações com fim não lucrativo e empresas (0,1%). Em Portugal esta distribuição tem as seguintes porções, respectivamente: 97,4%, 2,2 % e 0,5% . A quota da alocação das ajudas financeiras aos estudantes é a mais baixa da Europa-27, logo depois da Polónia (0,2%). No outro extremo encontramos países tão diferentes como o Chipe, Dinamarca, Holanda, Malta e Noruega(conjunto de países onde aquela quota é superior a 30% da DPTEES, podendo chegar aos 56% , no caso do Chipre).
Predomina pois, na EU-27, a prática do financiamento directo às instituições e a maior parte deste montante é alocado às funções do ensino (61,4%), distribuindo-se o resto por outras despesas de funcionamento (28,9%) e de capital (9,7%). Neste aspecto, a Grécia, a Suécia e a Eslováquia são excepções ( abaixo de 45%). Na Grécia, a maior parte do financiamento é absorvido pelas despesas imobiliárias e as infra-esttruturas (40,8%). Na Eslováquia a maior fatia vai para as despesas de funcionamento (46,8%). Na Suécia, os montantes alocados à investigação são quase tão elevados como os afectados ao ensino. Em Portugal as funções do ensino absorvem 69,1%, as outras despesas correntes 25,8% e as infra-estrutras 5% do total da despesa.
Numa óptica orientada para a função das despesas/por estudante em full time - Serviços de Ensino (SE), Investigação & Desenvolvimento (I&D) e Actividades Complementares ao Serviço de Ensino (ACSE) – os dados disponíveis são parcelares. Seja como for os disponíveis sugerem que na UE-27, o grosso da despesa/estudante é dirigido para os SE (67%), cabendo a I&D 45,5% e aos ACSE uma quota residual de 2,4%. Os dados são de 2003, e lamentavelmente Portugal encontra-se entre o grupo de 8 países de que não se apresentam dados (cf. Key Data…, p. 84)
Os recursos em pessoal académico (ratio Estudante/Professor) variam expressivamente na UE-26, numa amplitude que vai dos 9 estudantes/professor aos 28 estudantes/professor, como na Grécia. A média europeia ronda os 15,9 estudantes, sendo o ratio de Portugal ligeiramente inferior (13,5) , tendo pelo menos 9 países com um ratio mais baixo, entre o quais a Eslováquia, Finlândia, Suécia e Islândia onde existem, em média, 10 estudantes por professores
De um modo geral, a despesa por estudante é mais fraca nos países em que o número de alunos por professor é mais elevado, e o inverso também se verifica. Todavia, a relação entre estes dois elementos depende fortemente da massa salarial do pessoal académico; isto pode explicar o facto de entre alguns países com o mesmo ratio estudantes/professor, uns dispenderem mais por estudante do que outros.
Há três paises (Bulgária, Lituânia e Eslováquia) que se afastam claramente desta tendência, apresentando ratios muito favoráveis (menos de 15 estudantes por professor) apesar das despesas com a função docente estar entre as mais baixas dos países europeus em 2004. No Reino Unido, onde o montante destas despesas se posiciona entre os mais elevados dos países europeus, o ratio é de 18 estudantes por professor.
Portugal, com 4476 Euros PCP/estudante [o PCP ou Poder de Compra Padrão ou PPS-Purchasing Power Standard, é uma unidade de referência monetária comum artificial que é utilizada na UE numa perspectiva comparativa pois elimina as diferenças dos níveis dos preços entre os países], integra o grupo dos 6 países da União Europeia com menor despesa por estudante no ensino superior( 2800 a 5000 Euros PCP), quando a média da UE-27 é de 7898 Euros PCP. Deve notar-se que embora aquela meia dúzia de países tenha o PIB/habitante mais baixo da UE-27, entre eles existe também uma enorme diferença (tanto no PIB como na despesa/estudante) e há países fora do grupo com PIB equivalemente mas que realizam um maior esforço no financiamento do Ensino Superior (p.ex. Rep. Checa, Malta e Eslovénia) . Estes dados indicam apenas que não é apenas o nível de potência económica que determina o financiamento do Ensino Superior embora a tendência seja para haver uma relação directa (maior PIB/per capita, maior despesa por estudante do Ensino Terciário)
Daqui retiram-se algumas conclusões interessantes sobre Portugal . A primeira é que há uma grande tradição e comunalidade entre as sociedades europeias quanto à organização do ensino superior pelo sector público. De um modo geral o sector privado só tem alguma expressão quando subvencionado pela Estado, excepto num grupo de 4 paises, incluíndo Portugal, onde, decorrente de um impulso historicamente muito recente, é realmente expresiva a dimensão do sector privado independente, em especial no primeiro ciclo de titulação com um cariz mais profissional. A segunda é o nível muito baixo da despesa pública por estudante no Ensino Superior, um facto que não está relacionado apenas com o nível de riqueza do país, mas decorre também de opções políticas : há países europeus com níveis de produto semelhantes ao português que entendem útil e são capazes de fazer um maior esforço financeiro no formação de recursos humanos de qualificação superior. A terceira e última, é que o financiamento público em Portugal dirige-se essencialmente paras as instituições e a fracção destinada a ajuda directa aos estudantes é miseravelmente diminuta (quase 8 vezes menos que a média UE-27). O elevado peso do sector privado independente , a reduzia despesa por estudante a full time, e a reduzidissima fatia destinada ao apoio dos estudantes parecem serem os aspectos mais marcantes que separam a organização e financiamento do Ensino Superior do Padrão Europeu. Pelo menos as duas últimas características parecem actuar de forma bastante negativa nos resultados deste subsistema de ensino e nos níveios educativos do país.
(continua no 9832º dia)
III
A propósito do ensino superior independente em Portugal vou evitar a tentação de comentar alguns aspectos da entrevista ao Público e R.Renascença (Diga Lá Excelência) da Procuradora Cândida Almeida, Directora do Departamento Central de Investigação de Acção Penal da PGR.
A nota final é para uma boa notícia que li no Público de sábado p.p.: a Gradiva conseguiu fazer, pelos vistos após uma enorme persistência, a edição de uma das obras do americano Gary Larson, o cartoonista que descobri com a “sinistra, talvez, e perfeita” (The New York Time) série “The Far Side” (15 ou 16 vols, 1980-95?). Parece que era esta popular e genial série que a Gradiva pretendia mas conseguiu convencer Larson a deixar publicar apenas “There's a Hair in My Dirt! A Worm's Story” (1998), um “bestseller” da NYT que começa assim: Beneath the floor of a very old forest, nestled in among some nice, rich topsoil, lived a family of worms. Earthworms, to be exact. They had just begun to dine when the little worm, staring wide-eved at his meal, suddenly spit out his food and screamed.“THERE IS A HAIR IN MY DIRT! THERE IS A HAIR IN MY DIRT!”. Na edição portuguesa, pelo que li no ´Público,o título é “Há um cabelo na minha terra. Uma História de Minhocas”. Imperdível pelos desenhos deslumbrantes nos detalhes (cartoons) e pela prodigiosa fábula. Não deixo a capa, uma delícia, pois prefiro o retrato de tão simpática família.
HAF.