I
Deixei Luanda numa madrugada quente. Da janela do quarto vi o formigueiro que dos bairros periféricos, aos milhares, enlatados nos candongueiros, invadem uma cidade em obras. Fixei pela última vez o panorama da baía, a fila de navios que aguardam o porto, o casario urbano desorganizado batido pelo sol, o “tufo de acácias” que rodeia uma instuição administrativa vizinha. Despedi-me das empregadas do 7º piso, que cuidaram do serviço de roupas, dos quartos e da cozinha, onde pude re-encontrar-me com alguns antigos sabores graças ao talento de uma excelente cozinheira. Como posso não as encontrar no futuro, a objectiva da minha HP fixou-as, para sempre. Deixei uma última mensagem a alguns dos residentes (F.; J.; A.)
Entregue à perícia e moderação do José Luís , um angolano de “raça mista” (como inacreditavelmente consta no BI), na condução da carrinha da UMA , atravesso a cidade, já com as ruas e praças povodadas de vendedores de tudo, de demoradas filas nas “bombas de combustível”, que os “seguranças” procuram ferreamente disciplinar, e de todos os cheiros de mais de cinco milhões de seres humanos de condição tão exacerbadamente diferente. Olhos vidrados, mais que as pessoas vejo vultos, e fixo-me de novo nas acácias floridas. A escolha de JL [o motorista] para o retorno ao aeroporto foi minha; foi dos meus primeiros contactos, pois foi ele que, com o Vice-Reitor da UMA , me “apanhou” no dia da chegada. Entre estes dois momentos o JL não deixou de ser apenas um desconhecido e farei tudo para cumprir o que lhe prometi.
A barreira do aeroporto no acesso ao avião foi superada em cerca de hora e meia, após a longa espera do “check in”, onde foi necessário contornar as propostas de avançar com “gasosa” para ganhar um lugar na fila “vip”, o “incidente” do Visto e o Serviço de Alfândega. Aqui o diálogo do funcionário foi curto, claro e compreensivo. Cumprimentou educadamente, quase docemente, olhou para a mochila do portátil e o saco de mão com livros e deixou cair …. «O senhor tem dólares? “Não”. Tem euros? “Não”. Tem kwanzas? “Não”. Pode seguir: era só para ver se tinha algo para umas boas festas.». Na verdade não me senti pressionado. Percebi-o. Mesmo que tivesse algum disponível, apesar da forma como correu a conversa e daquele olhar de frustada espectativa, eu , por respeito ao funcionário, não lhe teria dado nada. No bolso guardava apenas três notas “pequenas” (50, 100 e 200) de kwanzas, para a família conhecer o dinheiro corrente da Angola independente.
No transporte que venceria o último lance da “fronteira”, conduzindo-nos ao A340 da TAP, entraram duas mensagens no tlm. A do Diogo, a quem pedi para confirmar se estava tudo bem. E felizmente estava…. A segunda, era de uma estudante do mestrado, que me colheu de surpresa e marejou a alma: “Tenha uma óptima viagem e volte sempre! Obrigada pelos ensinamentos, aprendemos muito em tão pouco tempo. O q é bom dura pouco. Bjs super prof. [nome]”. Viajei com esta mensagem e não vou querer libertar-me dela…e do compromisso de voltar. Durante muito tempo não desejei este retorno que as responsabilidades profissionais acabaram por proporcionar. Há muita coisa que posso e desejo fazer, aqui e lá. Devo isto a mim próprio, à minha geração e ao futuro
II
Na Portela re-encontrei a família e foi no regresso a casa que assisti ao único momento de violência nas últimas semanas : a tentativa frustada de assalto ao multibanco no Jumbo de Setúbal.
HAF